"A disciplina antecede a espontaneidade." Emmanuel

10 junho, 2011

Voo Solo

Após um rápido café, saímos eu e meu pai, rumo ao que seria um dos dias mais memoráveis da minha vida. O caminho até o campo de aviação não era longo. Após poucos minutos de carro chegávamos ao nosso destino. Meu relógio marca 06:55, o guarda campo se levanta preguiçosamente de sua cadeira vindo em nossa direção a fim de verificar nossos documentos e permitir nossa entrada.
Assim que me viu, reconhecendo-me, ainda a meio caminho de nossa posição, gesticula retornando então para abrir a cancela que dava acesso ao pátio do aeroclube. Descemos do carro. O ar da manhã, ainda gelado favorece a formação de uma névoa úmida que transforma a paisagem. A pista de pouso é sempre um lugar mágico. Os campos de aviação têm amplos gramados, sempre bem aparados que aumentam a sensação de liberdade . Um casal de “quero-quero” sacode as asas retirando o excesso de umidade e ruidosamente efetuam a primeira decolagem do dia. Fui o primeiro dos alunos a chegar. Meu instrutor me cumprimenta confiante, exibindo seu macacão cheio de penduricalhos. Ajudo a abrir a porta do hangar que range. Começamos a retirar as aeronaves e posicioná-las do lado de fora. Após esta tarefa, que não nos tomara muito tempo, checo qual a aeronave que se encontra na prioridade de voo. PP-GLK, um dos melhores na minha opinião. Este era um dos equipamentos utilizados para a instrução básica de pilotos, modelo AB-115, Aerobueiro de fabricação argentina com motorização de 115 Hp. Inicio a preparação para o voo. Depois das verificações de rotina, retiro os calços, embarcamos, efetuo o checklist inicial e dou partida no motor. A torre nos autoriza o táxi até o ponto de espera da pista 20. O AB 115 possui trem de pouso convencional, ou seja, temos uma rodinha lá atrás na cauda. Com isso o nariz do avião fica para o alto, nos obrigando a taxiar em zigue zague, somente assim enxergamos a pista de táxi. PP-GLK livre decolagem, vento 200º com 4 nós, autoriza o controlador. Acelero a manete de potência de modo a obter tudo o que o motor pode nos fornecer. Após pouco mais de 20 nós de velocidade já temos sustentação no estabilizador. O que faz com que a cauda levante facilitando a visão da pista para nós. Com exatos 60 nós de velocidade decolamos. Mantenho o circuito de tráfego seguindo orientação do instrutor. Durante esta manobra, que geralmente é feita em pouco minutos, meu instrutor relembra alguns procedimentos que devemos tomar no caso de alguma anormalidade. Fazemos um circuito “curto” para testar a minha habilidade. Após o pouso livramos a pista pela taxiway central. Meu instrutor pede para que eu pare. Abre a porta. Desce e me diz: chegou a hora. Decole, faça uns três toques, arremeta e volte para comemorarmos. A ansiedade é total. Agora a responsabilidade estaria comigo. Penso. Finalmente estaria no comando de um avião. Retorno para a cabeceira da pista. As mãos transpiram. O coração bate num ritmo diferente. A boca empalidece, a garganta agora ressequida quase não me permite responder ao controlador que me autorizava decolar. Rapidamente relembro dos procedimentos a realizar, os últimos checks e pronto. Alinho a aeronave, acelero como da vez anterior, repito todos os passos, até que...... Ganho o céu. Literalmente. Quebro neste momento a barreira natural que nos impede de voar. A gravidade. E melhor ainda, sei como utilizar a ferramenta que daquela hora em diante me possibilitaria ver o mundo sob uma outra ótica. O vento ainda gelado da manhã invade minha barulhenta cabine. O visual do litoral do Rio é estonteante. O mar reflete o brilho do sol. As montanhas verdes da mata atlântica dão o contraste perfeito entre o azul do céu e do mar com suas ondas acariciando as areias da praia. Faço como combinado. O primeiro pouso não é dos melhores. Afinal de contas os nervos ainda estão a flor da pele. Completo os outros dois pousos livro a pista em direção ao hangar. Enquanto estaciono e corto o motor os amigos correm para me saudar. Todos me parabenizam. Meu Pai de longe sorri e caminha para me abraçar. O voo solo é um momento cheio de emoção. É como se do alto Ícaro, o Deus do ar, revelasse seus mistérios a mais um de nós. Mortais. Percebo nos olhos dos pilotos mais experientes que minha emoção revive neles a lembrança deste exato momento. Como reza a tradição levo um banho de óleo. Lavo a alma com aquele líquido negro e mal cheiroso. Oficialmente agora eu era um deles. Me tornara um piloto.

2 comentários:

  1. Mais uma vez arrasou meu amor!!!!!

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  2. Fantástico Leandro! Sou filho e irmão de pilotos comerciais, e relembrei pelo seu relato quando meu irmão solou em Marilia (SP) no ano 1973, iniciando sua carreira de aeronauta. Parabéns pelo texto!

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